A vista da pandemia

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Quando criança, eu gostava de passar um tempo a contemplar a vista da janela. Via o céu, os pássaros, os carros coloridos e pessoas as mais diferentes andando pela rua. Esse hábito se mantém até hoje, na fase adulta. Os anos se passaram. Muitas moradas já tive: vi céu, gente, prédio, grama. O hábito de espreitar o lá fora me acompanha pela vida. Em tempos de crise mundial, a vista da pandemia revela diferentes cenários. É preciso desacelerar para ver melhor.

Em nossa cultura ocidental, a atividade de observação perdeu a importância frente à urgência da atividade. Temos que fazer muitas coisas o tempo todo. É chique estar ocupado. É feio não fazer nada “produtivo”. Neste ano, a pandemia se instalou rasgando tudo. Nas primeiras semanas, um movimento um tanto coletivo de realizar mil cursos, praticar todos os exercícios físicos possíveis, falar com todas as pessoas todos os dias. Uma caricatura para o desespero que sentimos no início do isolamento. O distanciamento social escancarou o que tanto nos faltava: tempo. Como usar nossos segundos agora?

Acompanhar as notícias da mídia nos coloca em contato com o número crescente de mortos, o esforço sobrehumano dos profissionais de saúde, a injusta desigualdade social. Temas relevantes que carregam junto a ansiedade e a tristeza que a empatia nos provoca. Com o tempo, muitos passaram a regular o consumo da informação. Perceberam que a overdose de conteúdo pode levar a um sofrimento mental que o isolamento potencializa. Sinto que estamos em uma panela de pressão. O isolamento em casa amplifica tudo: emoções, pensamentos e humores. A gestão de si tornou-se uma atitude fundamental.

A consciência da rotina nunca foi tão importante. Em entrevista à Globo News, a Dra. Maria Helena Franco, psicóloga e professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, comenta sobre a rotina como um espaço de controle e autonomia em meio ao caos. As atividades que compõem nosso dia nunca foram tão importantes. A maneira como ocupamos nossa manhã, tarde e noite muito contribuirá na nossa regulação interna. Amyr Klink, navegador com experiência larga em isolamento, mostra como a organização do tempo é vital para a nossa saúde mental.

“Nessas semanas de quarentena, percebi o quão importante é ter rotina. Se não a temos, ficamos nos controlando para ficar em casa, o que nem sempre pode ser bom. Devemos construir uma rotina e estabelecer etapas de paciência. Vamos esperar para ver o que vai acontecer nos próximos sete dias, nos próximos 10 dias, e principalmente usar a cabeça para enxergar o contexto do que está acontecendo”, diz Amyr para a CNN Brasil.

Quem diria… A rotina tornou-se refúgio e foco da nossa contemplação, uma âncora em meio à tormenta. Nos damos conta de que a agitação constante não é muito benéfica nesse contexto, que pode nos levar a mais sofrimento. Na desaceleração vemos com mais nitidez nossa vida, nossas escolhas, nossas atitudes. O isolamento em casa em meio a uma pandemia como a urgência de se manter vivo (e são) no próprio ninho.

Na minha rotina atual, a janela tornou-se vital. Um tempo para focar no que vejo, e não no que penso ou sinto. Preciso enxergar o céu e as pessoas. Todas as manhãs um casal de descendência oriental se exercita no apartamento à frente. Ela faz movimentos que remetem ao Qi Gong em uma bela dança em direção ao sol. Nos dias de sol forte, usa óculos escuros. O marido aposta em exercícios mais acelerados, com polichinelos vigorosos. Em alguns dias ela me vê como expectadora e me saúda com um sorriso. A vista da pandemia revela imagens e cores fortes: o luto, o medo, a ansiedade, mas sobretudo, a beleza do cotidiano dentro e fora de casa, nas entrelinhas do viver.

Este texto foi publicado originalmente no site Felicidade Sustentável. Clique aqui para acessar minha coluna.

Até mais!